terça-feira, 13 de julho de 2010

O Paraíso da Aldeia Colorida.

O Paraíso da Aldeia Colorida.

    Eram três da tarde e eu torrava sob o tejadilho da carrinha de serviço sob o Sol abrasador… entalado numa imensa fila de trânsito. As buzinas aturdiam os tímpanos, pairando um zumbido no ar, estranho, irritante… misturado com o som dos rádios e leitores de “CD“ que ecoavam desordenadamente do interior das muitas viaturas congestionadas no trânsito, quer fosse dum lado como do outro; à direita cantava o Marco Paulo, da esquerda o Zé Cid, mais à frente cacarejava o Zé Cabra… e lá para trás um desalmado borrifava-se todo, julgando os da frente culpados pelo emperramento do trânsito. Por vezes a arrogância saía disparada duma qualquer boca mais foleira, dando azo a risada colectiva, mas entretanto, entre a confusão de ruídos lá se ouvia uns zunzuns… uma notícia sobre o trânsito, mas falavam uns para cada lado e ninguém se entendia, nem arredavam pé. Já lá iam quarenta minutos e apenas cabeças e pescoços se movimentavam no interior das viaturas. De vez em quando, meia dúzia de cabeças rompiam pelas janelas, e através de esticões do pescoço tentavam mirar mais além.

    Triste sina a minha... nem para um lado nem para o outro!... Embora no sentido inverso as viaturas transitassem a passo de caracol… atoladas de sacos… e mais sacos… pareciam estar sempre no mesmo sítio. Deduzi que a tralha estivesse relacionada com a época de férias. Pois, esse era o meu problema, as férias. “Se eu pudesse passar para o lado de lá”! Mas na auto-estrada não há hipótese e eu teria de gramar debaixo de sol intenso, apenas protegido pelo tejadilho da carrinha. “Ainda bem que o branco reflecte os raios solares… se fosse preto o interior da carrinha seria um forno”. O meu raciocínio estava relacionado com a minha profissão; técnico de climatização. Fazia bem ideia das capacidades térmicas da minha carrinha, de cor branca, mas fazia bem ideia do terror que passaria se ela fosse preta; A cor preta absorve o calor, automaticamente a temperatura aumentaria em cerca de 6%, o suficiente para eu entrar em paranóia.

    Os motores dos camiões roncavam em vazio, provocando um fumo negro que desafiava as leis da física, passando de raspão ao nível das minhas “bentas”. O pivete incomodava à “brava”, restando usar as mãos para proteger a boca e nariz. A música salteada a mil tons ecoava de todos os lados… que confusão!.. De repente… mais uma barbaridade jorra da boca dum “javardo”. Os pescoços esboçam com sacrifício uma tentativa para rodarem, obrigando a uma ginástica extra… com umas cabeçadas à mistura. Eu prefiro olhar pelo retrovisor… para evitar um torção. E ao afinar o retrovisor, para uma melhor posição, deparo com… um “focinho”enfarruscado… e não me era estranho, pelo contrário; muito familiar. Demorei uns segundos a perceber a quem pertencia aquela fronha, talvez a música cansativa tenha sido a causa da breve amnésia. – “Que figurinha a minha”!... – O meu lamento foi perda de auto estima, ao ver um rosto farrusco, pintado pelo fumo expelido do escape dos camiões. Não bastou a quantidade de monóxido de carbono que aspirei… e ainda tive direito a um fuminho para pintura da cara. Não era Carnaval… nem no Brasil! Às tantas o trânsito começa a rolar, “no para e arranca”, mas já rolava… e isso era o mais importante. Era uma questão de mais meia hora e já estaria em situação privilegiada, de papo ao alto… numa estância balnear ao mais alto nível;”natural”. A família já lá estava, tinha saído pela manhã e passaria o dia numa azáfama; a montagem das tendas de campismo. Depois de todas montadas formavam uma aldeia colorida, com vários padrões a ornamentar a mais bela paisagem que tinha visto! Mas eu passara o dia a reparar uma máquina de ar condicionado num Centro de Saúde, assumindo o compromisso com o meu patrão de que entraria de férias a partir do momento que a máquina ficasse reparada. Pena ficar emperrado no trânsito, porque senão estaria a ajudar na montagem das tendas, tarefa em que adorava participar. O rádio debitava as notícias que esclareciam o motivo da paragem do trânsito; um camião avariado obstruíra as duas vias no mesmo sentido da auto-estrada, mas tudo estava a correr bem e o trânsito fluía normalmente.


    Mais meia dúzia de quilómetros e entrei no acesso ao local; um caminho ladeado por muros rurais, revestidos a era entrelaçada e das mais variadas flores silvestres. Os rosas sobressaiam em relação aos variados azuis, encarnados, verdes, violetas, amarelos, enfim… nenhuma cor estava fora de estação. As tonalidades baralhavam-se, formando diversos padrões arruado abaixo, mais parecendo um imenso tapete a corar, estampado a mil e uma cores. Do interior do tapete colorido brotavam gotas duma água cristalina, como lágrimas constantes chorando sobre as flores… escorrendo num labirinto de caules até matar a sede às raízes. As verdes folhas das urtigas, hortelã, cidreira,serviam de aparadeira às pingas perdidas na cascata, sobranceira a tão nobre jardim.

    Ainda no interior da carrinha… estático e sem vontade de engrenar a velocidade, reparei num fontanário jorrando água límpida sobre uma pia empedrada. Os salpicos dançavam uma valsa descontrolada, vazando borda fora e formando uma bacia no chão enlameado… simulando uma represa com três palmos de profundidade. Via-se num fundo transparente a areia a brilhar, e um chuveirinho alternado compensava o vazado que corria na arribada até ao fundo do valado. A cascata “galgava” muro e banhava um verde tapete, formando um pantanal. Decidi estacionar e explorar o terreno, aproveitando para lavar a cara churrascada na pia do fontanário; uma obra de arte esculpida num rochedo de granito. Aproximando-me do lameiro reconheci que seria difícil lá chegar sem que enlameasse os sapatos, de modo que, descalçar-me seria a melhor forma para arriscar a travessia no dito pantanal. E assim foi: de sapatos na mão e siga em frente… toca a marchar.

    –“Ufa, água fresquinha… até apetece beber”... – pensei com os meus botões, depois de banhar os pés afogueados no lameiro aveludado. A sede atacou-me instantaneamente, e na ânsia de ser regado avancei para o dito cujo… com vontade de me saciar na frescura do spray que pairava no ar.

    Abordei a pia e… jamais poderia resistir ao espelho natural que reflectia a minha imagem baloiçando numa onda viva, provocada pelo caudal jorrado naquela bacia feita de pedra, uma grande pia de baptismo. – “Aahahah! Fresquinha”! – regozijei silenciosamente, mergulhando mãos e cabeça na tal bacia. Uma vez atrás da outra e já lá iam cinco lavagens ao “focinho”, sem parar… até que rapei a gravata e a camisa... e lá vai disto; um banho banal!... Sacudi, esfreguei os olhos e bebi do jorro cristalino, saciando a minha sede.

    As horas estavam a passar e eu ali a mandriar enquanto os outros transpiravam na construção do aldeamento. –“Bem, amanhã novo dia será e cá estarei para novo ritual, desfrutando da tranquilidade deste paraíso... um lugar banal ... – pensei em voz alta, falando sozinho. Peguei a camisa que corava ao Sol e vestia-a pausadamente enquanto sonhava acordado perante tão belo lugar! Os sapatos teriam de ficar para mais tarde, ainda faltava atravessar o pantanal, uns vinte metros de tapete verde enlameado e adornado pelas ervas e flores de trevo que abundavam no local. Estava a viver uma fantasia… um sonho ao vivo sem igual… e sem vontade para acordar. Depois de caminhar descalço naquele chão aveludado, chegara a hora de calçar os sapatos, mas quando a meia “abafou” o pé tive a sensação de ouvir os dedos gritarem, suplicando pela liberdade que estavam a desfrutar. E num acto brusco rapei da meia, anichando-a nos sapatos segui a caminhada em direcção ao muro estampado.

     –“Que loucura… é tão suave”!... – pensei num murmúrio abananado, depois de “acariciar” as mãos no tapete almofadado… aquele que vestia os muros que me ladeavam. As folhas… “concavam”, acumulando gotas de água orvalhadas, e a passos retardados debandavam a reboque sobre as pétalas das flores trepadeiras. A cada pinga… uma pétala dançava, e duma forma alternada todas bailavam como musas encantadas. Os raios solares penetravam nas copas dos carvalhos e sobreiros que sombreavam o lugar, formando prismas, penumbras… as mais raras e belas das fantasias, e refinando-se entre as folhas… embaladas pela brisa, cintilavam milhões de lamparinas. – “Uma perfeita abóbada natural”!... – solucei… pasmado, parando no tempo! … Enfeitiçado! Encantado pelo momento! E num brusco estremecer, como se estivesse a acordar dum sonho lindo, dei por mim a olhar o céu, suplicando… orando ao criador pela rara criação.

    Convertido em peregrino, descalço… e de sapatos na mão, julguei-me perdido num templo… numa catedral! A música soava no ar, uma bela sinfonia orquestrada por rouxinóis, melros, pardais, e como maestros principais um bando de pintassilgos, que além dos seus dotes musicais exibiam coloridas plumagens, ao mais alto estilismo. Mas quem passeava na passerelle era eu, deslumbrando!... Sonhando!… Vivendo!


     Segui em frente num passo lento até ao fundo o corredor, e vi o azul da água do rio sorrir por entre o canavial! Alarguei o passo e fui espreitar entre as canas...– “Banal Um verdadeiro altar”!


    Num impulso… bradei aos céus... –“Cheeeeegueiiiiiiiii!...” ! – e a algazarra explodiu na aldeia colorida, com risos e gargalhadas à mistura gerando-se um festim de boas vindas a tão nobre convidado; um turista… sem sapatos, disfarçado de peregrino. Abananado... não queria crer no que via; a aldeia colorida. Mas era, não restavam dúvidas… e se as houvesse... só pelos risos e gargalhadas até um cego se apercebia. – “Mas como vim aqui parar”?!...

    Ainda incrédulo, aturdido perante tamanha ovação… de troça, olhei o monte à minha volta e vi que afinal tinha entrado pela porta errada, a do fundo… no quintal! – Ahahahaha! Olha esta! Mas... – soltei umas risadas… mirando o outro lado. – “Mas… eu deveria entrar por ali”!...Ahahahah!... – pensei no meu silêncio... de “Palhaço”, rindo com mais vontade do que eles.

    Incrédulos perante meu comportamento pararam no tempo... pasmados, com ar de palermas, transparecendo a ideia que se questionavam entre si: – “Porque ri o desalmado como num circo, invertendo os papéis?...” – e eu ria mais ainda perante o ar abananado dos “lérdinhos”, fazendo-os sentirem-se “Gozões... Gozados“.

    – Ahahahahah!...Ahahahah! – um ataque de riso apoderou-se de mim, contagiando a maralha de montadores de tendas de campismo. – “Ahahahah! Ahahaha!...” – e todos rimos… sei lá porquê, mas rir consola e eu ri à farta.

    Serenados os ânimos avancei para o areal, massacrando os pés descalços num piso agreste; fronteira do canavial. À medida que avançava no terreno ouvia risos trocistas mordendo pela calada… curtindo um janota descalço com as calças arregaçadas… gravata e meias amarrotadas no interior dos sapatos. E era disso que todos riam, eu bem o sabia, mas dava-me gozo ver a aldeia colorida ornamentada com um “bananal”! Os bananas nem sonhavam que além do pantanal existia mais uma paisagem surreal, mais bonita do que a aldeia colorida, em nada artificial… apenas cores naturais.

    Numa farsa divertida… fingi estar de rastos, como que renegando aquele dia, e contei a cena da auto-estrada, mas de repente… o alarme estava dado. – Esqueci a carrinha!... Ahahahaha!... Esqueci a carroça no meio do monte!... Ahahahaha!... Ahahahahah!... – e a risada espalhou-se ao povo das tendas vizinhas, numa galhofa geral… até o mais pequenino riu da minha leviandade; esquecer a carrinha no monte!

    – Ahahahah, ahahahah… és mesmo cabeça no ar... – argumentavam meus primos, abanando o capacete… como quem diz; “andas a nanar”. Mas o pior vinha a caminho e eu sabia qual o destino a que me sujeitaria depois de abrir a “boca” e desabafar.

    – Ahahahaah, ahahahah… onde está a carrinha?!... Ahahahaha!... Ahahahaha!... Ahaha-hhahaha!... – questionei-me em voz alta, intercalando umas risadas... “atiçando” a fogueira até levar as brasas ao rubro. – Ajudai-me a procurá-la… ahahahahahaha!... Ahahahahaha!... – e depois de tanto riso a “bomba” teria de rebenta... mas que bronca! Teria que despachar-me... correndo na direcção do rio e mergulhar antes que sentisse as pernas a aquecer... para evitar urinar em “parada”.

    – Ahahaha! Ahaahah! – todos riam, mas eu ria a dobrar. – Ahahaha, ahaha! – e não era para menos… depois de sentir o xixi escorrendo pelas pernas abaixo. – Cá vai um banho fresquinho para arrefecer os ânimos... ahahahahah! – e corri desesperado… sentindo os pés bem quentinhos, mas por muito que corresse iria perder a dignidade antes de mergulhar. E assim foi: – “Que maravilha… veio mesmo a calhar”!... – suspirei de alívio ao mergulhar nas águas límpidas do rio, curtindo aquele “Mundo tão calado”! Mas no fundo subaquático… além de algas e peixinhos flutuavam pernas de “gente fina” em posição “anti-sereia”. E não foram apenas “eles”! Também elas... coitadinhas, tudo fizeram para não perderem a dignidade.

    O movimento das minhas braçadas gerava umas ondinhas que ecoavam em turbilhão… como um murmúrio no silêncio. O fôlego estagnava e eu precisava respirar, nem que fosse um bocadinho para ver o filme do outro lado. E num impulso… uma lufada de oxigénio... um arregalar dos olhos e... vi a cena ao “cair do pano”. Quase todos foram à água! Não fui o único banhista vestido!... Foram muitos os artistas, alguns até... anónimos”, e houve quem “vazasse” pelo caminho como um “regador” furado.

    A aldeia estava em festa, e após o banho… semi-colectivo chegara a hora do jantar; um churrasco divinal. Veio mesmo a calhar, depois da caminhada no pantanal a fome atacou a dobrar. No fim… um cafezito, preparado na chocolateira de ferro fundido abrasada sobre o borralho da fogueira. As façanhas do dia foram narradas à mesa, antevendo um longo serão, e como não poderia deixar de ser... o artista principal era eu. Desbobinei um filme real, desde o engarrafamento de trânsito na auto-estrada até ao areal. Houve momentos na conversa em que perdi o fio à meada, lembrando que a carrinha não tinha sido procurada. – “E vais pensar agora na carrinha?... E a esta hora!..” – pensei baixinho… antes de alarmar as Hostes.Num gesto repentino rapei a viola do saco e bradei em melodia:

    – Somos a tribo rural! Vivemos ao natural… Lálalaralarlala! Lalaralalalá!...

    A farra durou até às tantas, presenteada com danças e cantares até a malta perder a voz... até ao “alerta” do primeiro afónico dar à sola em “debandada”. Depois da orquestra desafinar nada mais a fazer senão nanar... ficar mudo algumas horas e recuperar a voz desafinada. Mas deitado de “papo ao alto”... algo estava inquietando a “calmaria” do meu pensamento, martelando-me as ideias e mantendo-me acordado: – “A carrinha”! – decifrara no momento o que me “atazanava”. Bem, nada de preocupar, a Aurora estava a romper e os madrugadores concerteza encontra-la-iam em três tempos... afinal não estaria assim tão longe; bastava atravessar o pantanal.

    Puro engano… ou coincidência, mas um palpite leviano tinha rasado ao de leve meu pensamento. – “Será que vão arriscar em algum momento atravessar o pantanal”?! – zumbiu muitas vezes no meu ouvido aquela ideia de... – “Não faltava mais nada!... Enlamear os sapatos!… Descalços no lamaçal”!?... – e mediante a minha intuição não seria de estranhar que se fizessem de “alonsos”... não se iriam sujar, mas a esperança é a última a morrer e eu ainda acreditava num “milagre”.

    Já o Sol ia bem alto quando acordei em sobressalto, preocupado com a carrinha. De pronto, alei da tenda e lancei um olhar disfarçado em redor do acampado, na esperança de ver o “tal milagre”. Mas... qual milagre qual quê!... “Santos da casa” não fazem milagres! Depois dum ténue “fitar de olhos” sobre os rochedos vi uns “Santos” pescadores de cana em “riste”, nada preocupados com o raio da carroça, os seus rostos expressavam boa disposição e ninguém lhes tinha pedido nada... para quê se “chatearem”... armados em detectives!... Mas se lhes tivesse recomendado o “serviço” arranjariam uma qualquer desculpa para confirmarem a má vontade! Com jeitinho... estes “Zé Marias ”argumentariam“ não ter condições”; talvez não possuíssem carta de condução. Guardavam “alguma na manga... e eu teria de refrescar as ideias para que não suspeitassem da minha frustração quanto ao facto do ansiado milagre sair furado.

    Depois dum mergulho nas águas cristalinas do rio delicie-me com o pequeno-almoço, sentado num pedregulho... uma esplanada natural, e enquanto usufruía das sombras… abundantes na aldeia colorida, pensava com os meus botões: – “Não ficaram convencidos do Paraíso desenhado através de minhas palavras!... Afinal quem é o janota?... – e ri sozinho… relembrando o momento da minha chegada ao acampamento; duma apoteose...

    Bastou fitar o denso canavial, visto na mesma perspectiva que viram os “galhofas”... no dia anterior, e realmente… vendo o filme dessa maneira... até deu para rir. E ri por instantes… ao rever-me na pele de índio perdido nos confins da floresta, atravessando uma paliçada simulada pelas canas que constituíam o canavial. – “Que raio de maneira eu fui arranjar para me apresentar perante a minha tribo”! – pensei no vazio, relembrando a “apresentação”do dia anterior. – “Calças arregaçadas, gravata e meias amolgadas no interior dos sapatos... e calçados na mão”!...


    Ai se ouvissem meus pensamentos!... A galhofa serviria de “alvorada” para a plebe da aldeia, já que o silêncio na pescaria mantinha-os adormecidos: o melhor seria ficar calado para não espantar. Levantei-me do improvisado banco, olhei em meu redor e não vi “viva alma” perto de mim, todos eles mantinham seu posto... em “vigília”. Avancei uma vintena” de passos e reparei o quanto estavam entretidos os viciados na arte do anzol, massacrando as indefesas enguias encalhadas nas muitas lagoas formadas pelas marés. No momento do “massacre” às enguias, meditei: – “Santos Pescadores ou... Santos Pecadores”!?...

    Era normal que as enguias atingissem aquele ponto do rio, próximo da foz, arrastadas pela maré galgavam socalcos inundados além da margem, um terreno irregular. Durante algumas horas… tudo era rio, mas na hora do vazar formavam-se grandes lagoas, e os peixes desprevenidos… que nadassem tempo de mais em terrenos alheios acabavam retidos nas armadilhas naturais. Eram às centenas por cada lagoa tentando a fuga para a liberdade, mas já era tarde… o nível de água não o permitia, ficando à mercê dos muitos pescadores fortuitos que a táctica da “babujem”.

    – Ena !..Que grande!... Olha outra!... Ena… tantas!... – a cada passo ouviam-se as vozes, comentando o tamanho e a quantidade de criaturas que nadavam nos viveiros naturais! A algazarra assustava os curiosos, que de longe… e muito encolhidinhos espreitavam “por cima da burra” e não viam peixes; viam cobras.

    – “Ehehehehe!.. – riam os mais audazes, depois da espreitadela à cesta. Era o truque dos pescadores… para enxotar o enxame de “moscas” que se aproximava. E quando um grupinho fazia monte e estorvava, lá se ouvia um pescador.

    – Enxotai as moscas! Vai-te embora melga!... – e as risadas soavam entre os restantes pescadores, acompanhadas dos mais variados comentários:

    – Olha a cobra! Olha outra! Tantas pá… foge daí!...

    Escusado será dizer que… os mais receosos, ignorantes na matéria, davam meia volta ao cavalinho e alavam em retirada... morrendo na ignorância. E repreendiam os filhos a voltarem àquele sítio, jurando a pés juntos que aqueles homens pescavam cobras como quem pescava peixes.

    – Eheheheh! Eheheehe – ria o João… de macaquice, e de relance olhou para mim, perguntando… com ar ”gozão”:

    – Já encontraste a carrinha? Ehehehehe!... – riu o João de mansinho... à espera duma resposta que lhe desse motivos para rir à farta. Nem lhe respondi, mas no íntimo admiti que adormecera no tempo, murmurando cá para mim: – “Mas com um raio… eu já tinha esqueci-do a carrinha... fiquei ali a ver a banda e o tempo passou sem dar por isso!... Onde estou?!... A nanar”?!... – interroguei-me no meu silêncio, também eu... esperando uma resposta que me satisfizesse. Fitei os olhos do “Gozão” decidido a responder-lhe, mas num instante me apercebi o quão desconsolado se sentia pelo facto de não lhe ter saciado a curiosidade, de modo que optei por brincar com a situação, trocando-lhe as voltas:

    – Ainda não... nem me preocupo com isso, não preciso dela... – e sentindo que o João estava amuado, continuei. – Está bem guardada, ninguém a rouba naquele ermo lavradio, e pelos vistos… nenhuma alma imaginaria um carro circular naquele sitio. Pensando bem… nem mesmo eu percebi como lá fui parar... se calhar troquei as voltas na encruzilhada; obra do destino…

    Perante a minha insensibilidade para com a carrinha o João amuara, mas nem piara, mantendo a mudez constante... sem gestos nem “barafustos”, mas transparecia um “ar semblante”... Eu sabia qual o motivo do “amuo”, por isso descartei-me e “reinava” através do meu silêncio, esperando um “queixume”. E não foi necessário muito tempo para o João se queixar:

– Mas se não procurares a carrinha como vamos às compras? – perguntou o João... meiguinho, mudando de tom.

– Sei lá! – respondi de rajada, desmarcando-me da jogada, e ao virar costas... chutei de “biqueira”. – Ide a pé!..

    A pescaria durava horas... entretendo a população residente na aldeia colorida até à hora do almoço. Além do meu pai, meu irmão e meu filho, também os meus primos e meu tio mais três amigos faziam parte da comandita de pescadores furtivos. Os outros membros da tribo mantinham-se no acampamento, atarefadas na cozinha; a minha mãe, a minha tia, minhas primas e a Alice… as cozinheiras de serviço. As tarefas domésticas eram divididas entre mulheres… que se sentiam mais à vontade, e para os homens… “calaceirões”, bastava as compras no mercado para lhes roubar o tempo! De repente… toca a sineta a rebate, anunciando aos machos da tribo a hora do almoço;“Tlintlim… tlintlin... tlintlin...”. E não parava de tocar, “esganiçando” um som estridente… acompanhado de um grito desafinado:

    – O almoço está pronto! Venham alm... – e de repente a voz falhou, dando a entender que não estava habituada a ”berrar”. Pelo seu grito de guerra esfrangalhado mais parecia cacarejar, e claro… sem meias medidas o meu pai arranjou circo, dando a dica dele… para não variar:

    – Quem esganiçou?... Parecia uma galinha choca... eheheheh!... – gracejou o meu pai, dando “azo” a risota colectiva, levantando um “sururu” sobre quem seria a arrojada que bradou às armas sem treinar.

    – Eheheheh, mas ela nem acabou de se pronunciar... ehehehe!... – ironizava o meu tio, atirando “axas” à fogueira. – Eh ehehehehe… arriou à primeira… eheheheheh!…

    A risada continuou a gerar boa disposição no seio da cambada que caminhava em procissão, amontoados com tralhas às costas... na “galhofada”. Alguns pareciam rezando, largando contas do terço fora da missa, e alastrando a risada a uma sinfonia de risos desafinados, levando o circo até às portas do acampamento, a aldeia colorida!

    O almoço foi servido, baseando-se em sandes, fruta, sumos e “lambices”... os ”mimos doces” para os “putos”, e depois dum cafezito uma cigarrada para o caminho... de papo ao alto na “arribada” a montante da “tainada”. Havia sempre alguém que me acompanhasse na “mística cavaqueira”, e após duas de treta surgia a “rabaça”, convidando para uma sesta à sombrinha dos abrunheiros que ladeavam a cerca. Mas eu tinha de procurar o raio da carrinha… não me saindo da ideia o risco de ser roubada. E embora tivesse feito transparecer tranquilidade durante a conversa matinal mano-a-mano com o João, o facto é que eu estava muito preocupado, e na verdade fizera “bleuf” apenas com a intenção de “reinar” com o “porquito” que ansiava “grunhir” à minha pala. Ehehehe... bastava olhar de “canto sem que ele percebesse para se sentir a agonia que lhe corria na alma, tentando elaborar um processo para transportar as compras, senão teria de as carregar às costas... e a ”penantes”. Coitado do João; horas antes era o “Gozão, em minutos passou a ser” o “Gozado”.

     Num ápice acordei do “pesadelo” e desafiei os falsos caminheiros, os tais que diziam da boca para fora e juravam possuir espírito aventureiro. Quem os ouvisse palrar até pensava que aquela tropa estava habituada a escalar os tais íngremes desfiladeiros de que se “engalhardetavam”. Conversa de pobres janotas, preferiam torrar ao sol… provocando vermelhões e crises de icterícia, untando a pele com óleo de... rícino! E nem valia a pena bater mais na tecla, a música tornava-se cansativa, mais valia dar à perna; melhor sozinho do que mal acompanhado. Mas o João... sentindo na “pele” a obrigação lá se ofereceu como voluntário no resgate da carrinha, mesmo que contrariado teria de mostrar a sua solidariedade, tirando daí o proveito nas “boleias” ao mercado, senão teria de ir a pé... pensaria ele.

     – Eheheheh!... Eheheheh!... Tem calma João... ehehehe... não precisas sujar-te. – reinava eu com o João... e de seguida tranqualizando-o. – Eu estava a “reinar” contigo quando disse não saber da carrinha... ehehehe!... Fica descansado... vai lá à tua vida que eu em estilo de passeio vou encontrar a carrinha. E assim foi: o João continuou sendo “janota”... porque não se enlameou e eu mantive em segredo o caminho para o “Quintal”.


    Peguei ao colo o meu filho, com a ajuda da Alice elevei-o aos ombros… às cavalitas, e somente os três avançámos rumo ao pantanal, dando corda aos sapatos, mas apenas até ao canavial, porque a partir daí surgia o tal pantanal que dava acesso ao célebre “paraíso”! Pensando melhor, regressámos à base para trocar os sapatos por chinelos de praia, mais adequados para caminhar naquele tipo de terreno. Foi a melhor opção… até meu filho caminhou sobre o tapete enlameado, mais macio do que veludo. E na passagem do labirinto entre as canas, quase no fim da travessia, o puto deu o alerta lá de cima… do primeiro andar.

     – Papá!... Papá! Olha que lindo passarinho! – gritou o puto, eufórico… vendo um Gaio em primeira instância, exibindo as suas cores ente as folhas das árvores. A vantagem de ir às cavalitas proporcionava-lhe uma visibilidade superior à minha, o suficiente para que estivesse constantemente a informar sobre tudo o que via, e eram muitas as novidades.

    – Olha aquela borboleta… papá! Que grande! Tem riscas e bolinhas – acenava o puto, delirando com as mariposas. Repetiam-se constantemente os avisos sobre tudo quanto via, quase nem dava a que eu as classificasse. Por instantes o puto mantivesse calado… ouvindo os sons que ecoavam no ar. Desde o zumbir do abelhão ao piar da pita de água… a música era divina. E quando entraram os grilos… os cânticos fizeram-no sorrir, e com receio de os espantar… sussurrou-me ao ouvido:

    – Tantos grilos, Papá… não faças barulho papá... – e colocando o dedo indicador de frente ao nariz... fez um gesto... pedindo silêncio, ao qual eu correspondi, esboçando um meigo sorriso.

    – Oh papá… olha morangos!... – gritou o puto, impulsionando um gesto sobre meus ombros, dando a ideia de querer desce até ao rés-do-chão. De pronto observei o sítio ao qual acenava constantemente com o dedo em ”riste”, enxergando um vasto manto vermelho que ocupava parte do tapete verde… como se fosse a bandeira de Portugal. Os morangos silvestres misturavam-se com a restante vegetação rasteira, sobressaindo o vermelho vivo entre as folhas verdes de trevo. Uma imagem digna de ser vista… até pelos olhos dos mais “graúdos, quanto mais pelos olhos duma criança... que delirava a toda a hora com tudo o que via; borboletas, libelinhas, abelhas e abelhões, grilos, melros, gaios, rolas e pardais, e muitas outras criaturas que “moravam” naquele lugar. As Plumagens dos pintassilgos... vistosas pelo colorido, enfeitavam os silvados e iludiam os meus olhos, vendo amoras em vários tons.

    – Tantas… tantas rãs, papá! – contra-atacou, e sem que terminasse a exemplificação da cena anterior já “barafustava”, excitado pela nova “aparição”. – Olha galinhas pequeninas, papá! Andam na água… e não afogam?! – soltou uma gargalhada, achando graça à pita de água que caminhava sem se afundar sobre os nenúfares que cobriam parte da superfície do lago.

    – São pitas de água, bebé… e aquelas plantas são nenúfares! – respondi, dando início a uma cessão de esclarecimento sobre as várias espécies que viviam ali, naquele lago natural, cuja nascente ficava lá em cima do valado; o tal fontanário onde bebera e me refrescara no dia anterior, bem perto do local onde deixara a carrinha.

    O leito do lago era formado pelo excesso da água vazada na pia do fontanário, e correndo ”ribanceira abaixo” alimentava um grande espelho... decorado com floridos nenúfares e outras plantas aquáticas, as quais foram transformadas em passadiços pelas pitas, para percorrerem um caminho sobre uma límpida superfície de água ajardinada, o local que escolheram para seus ninhos. As rãs usavam-nas como poisos, curtindo o Sol que nelas raiava, e de vez quando… um chapinar na água dava azo para mais um alarido:

    – Vis-te, papá?! Que salto a rã deu!... Olha outra!... Olha... olha, mamã! – acenava entusiasmado, e numa sequência continua muitas rãs mergulharam, provocando uma euforia hilariante na inocência dum puto. E a dado momento o espectáculo virou circo, com um ataque de riso que nunca mais parava.

    – Oh papá… olha aquela rã a andar de barco…hihihihihi! Estás a ver, mamã?... – insistia constantemente para que a mãe olhasse. Estava fascinado com aquele espectáculo, e não parava de rir… mostrando quanta felicidade sentia no momento. Até eu e a Alice… “burros velhos”, delirámos ao ver as folhas soltas dos nenúfares “navegando” à deriva nas águas afloradas, transportando as rãs… como barcas moliceiras.

    A fantasia adormecia… e não fugimos à regra, pois a dada altura olhei o Sol e vi que se estava a pôr. O que tínhamos andado sem estar-mos cansado s, e com vontade de ver mais, mas o tempo de luz esgotara-se e faltava procurar a carrinha.

    – Está ali, papá! Está ali em cima! – acenava para o ponto exacto onde estava a carrinha, saltando sobre meus ombros… feliz pela sua descoberta. E era mesmo ali, já se via o caminho que dava acesso ao fontanário… e o arruado florido com os muros cercados por ervas e flores da estação.

    Caminhámos na direcção subindo o outeiro e... um quarteirão mais à frente já se respirava o perfume das flores que pendiam da ramada, como cachos de uvas... “fora de estação”. Dali para a frente o “Mundo” era outro, e a cada passo dado... “mil e uma” manifestações, deslumbramentos de três caminheiros encantados com o “Cenário”. E quando o puto viu as cascatas de água cristalina regarem os muros floridos que muravam o “regadio”… imaginou o Natal, com muitas luzinhas brilhando por tudo quanto era sítio.

    – Oh papá… parece a iluminação no Natal!... – comparou o puto, irradiando satisfação no brilho de seus olhos. E pareciam luzes verdadeiras, mas era obra dos raios solares, que incidindo luz sobre gotas de água cristalina retidas nas folhas e pétalas das flores simulavam lamparinas. Os cânticos enchiam o parque... com música erudita… própria para concerto de catedral, formando um paraíso sem igual! Por alguma razão eu estava ali… deslumbrando uma vida jamais imaginada. E foi ali… naquele sítio que tudo começou, admirando um arruado cercado de flores, desde rosas, lírios e amores, urtigas, cidra e hortelã… e muitas outras coloridas; uma aguarela natural! E dois passos mais à frente... lá estava a carrinha. Abri a porta e... ficámos “purificados” ao respirar o ar perfumado vindo do seu interior.

    – Que cheirinho!... – exclamou o puto, esboçando um sorriso… como que comparando os aromas e tirando conclusões; não costumava cheirar tão bem. E tinha razão, porque o normal seria o “pivete” a tabaco, o tema de várias discórdias durante os passeios de fim-de-semana.

    – Ahahaah! – soltei uma gargalhada a vazio, percebendo bem a sua expressão; se tivesse deixado os vidros cerrados inalaria um odor ressacado e enjoaria pela certa. Mas nada de odores, e o facto de ter deixado os vidros abertos durante o abandono... simplificou o processo, o suficiente para que os aromas circulassem livremente no seu interior e purificasse o habitáculo com as mais variadas essências silvestres! E depois de nela entrar… algo tocou no meu ego e alertou-me, como se fosse uma mensagem... dum qualquer anjo da guarda que estivesse ali por perto: –“Porque fumas tu… seu nabo”?!... – e meditando por uns segundos… pensando bem no assunto, testei meu subconsciente, insistindo na “meditação”. – “E se isto for um sinal”?!... Afinal estou num paraíso surreal”!... – pensei, tentando assimilar o útil ao agradável. E no momento fui “sensato”, aceitando que a fé é que que nos salva, e se a fé fizer sentido porque não aproveitar?! E como pecador nato nem devia olhar para trás, não misturar crenças com fé, nem alimentar superstições, e fosse anjo ou diabo a ideia era banal. E pronto, sendo eu o fumador... deixei imediatamente de fumar.

    Arranquei de marcha atrás, fazendo a manobra de inversão no sentido, porque arruado abaixo não tinha saída, o destino era o pantanal. Foi obra do acaso que me levou até ali, o que muitos chamariam de destino, e chamem-lhe o que quiserem não encontro outra razão para justificar o facto de ter trocado os passos numa qualquer encruzilhada menos conhecida. Circulando lentamente, em passo de caracol, ia tentando perceber como entrei ali, e após uns metros já me sentia perdido. – “Eu não passei cá”!... – pensei para mim, tentando enxergar um ponto de referência, mas por muito que olhasse... tudo me parecia estranho. De repente… surge uma vala, sem estilo de estrada, mas tinha marcas do rodado duma carrinha… a minha. – “Como fui passar ali?! Só mesmo distraído” – pensei com meus botões, magicando outra saída, mas seria por lá que teria de seguir.

    A luz escasseava, começava a anoitecer e teria de “dar à perna” para não ficarmos à deriva entre morros e valados! Virei a direcção para a dita lomba e avancei... duvidando do terreno, mas após alguns metros... já sabia onde estava: – “Mas como vim cá parar!... Estava mesmo a dormir”!... – meditei… julgando-me na hora certa por tamanha leviandade. – “Bem… o que lá vai lá vai e o resto é que interessa”!... – rematei a “minha conversa” num tom para quem quisesse ouvir. O meu desabafo foi corroborado com sorrisos da Alice e do meu filho, que num gesto pausado rodou o botão do rádio, iluminando o painel frontal onde estava o maço de tabaco. Deitei-lhe a luva e lancei-o porta fora, seguindo caminho… curtindo a música do rádio num ambiente aromatizado. Passados uns minutos surgia no fundo escuro,mas reluzente, um brilho ondulante, e mais à frente havia vida; a aldeia colorida.

Iluminada pelas tochas artesanais, como nos tempos antigos… o clarão da fogueira ao centro da clareira sobressaia ao longe, servindo como farol para os perdidos, e numa fase em que o telemóvel era desconhecido nada melhor do que uma fogueira para alinhavar o trilho. Agora sim, estava do outro lado… na entrada principal. Mas não era igual à entrada do fundo do quintal, que dava acesso ao Paraíso, mas essa entrada era só para os índios… tal e qual eu.

    Estacionada a carrinha, e aproveitando os últimos momentos para respirar os aromas silvestres concentrados no seu interior, espreguicei-me… arranjando posição para sair do veículo. Enquanto isso, reparei num aglomerado de pessoas olhando na minha direcção, alertadas pelas luzes dos faróis, e nesse momento um vulto aproximou-se, com arrogância... atirando a matar:

    – Até que enfim! Por onde raio andastes durante toda a tarde? – interrogava o meu pai , em jeito de reclamação. Estava preocupado pela nossa ausência demorada e injustificada. Imaginei desde logo que estaria preocupado… e porque o conhecia bem... sentia o que lhe ia na alma, o que lhe “martelava” na cabeça. Mas depois da justificar a demora no “resgate” da carrinha, tudo voltou à normalidade, com as tais risadinhas do costume, entre murmúrios e chaladas.

    – És sempre o mesmo cabeça no ar”! – desabafou a minha mãe no momento em que o meu filho correu para seu colo, tratando logo de contar o filme:

    – Oh vovó... eu vi pitas de água a correr no lago… e também vi as rãs andarem de barco nos nenúfares! – encenava o puto através da sua expressão inocente. E contando o filme com a mesma “paixão que sentiu quando o viu, fantasiou as mentes cegas dos mais incrédulos, originando um coro… quase em orfeão.

    – Amanhã pela manhãzinha vamos ao paraíso! – confirmou o meu tio, desde logo mostrando curiosidade em conhecer tão privilegiado lugar que existia do outro lado.

    – Eu também vou! – ordenava a minha mãe, desafiando a minha tia. – E tu vens?

    – Claro que vou! – respondeu a minha tia, rematando de seguida. – Agora vamos jantar e no fim adiantamos os afazeres para amanhã, e após o pequeno-almoço vamos todos dar um passeio; quero ver esse lugar tão bonito!

     Após as palavras da minha tia; toca a jantar. Soou a sineta mais uma vez, mas sem bradar às armas... como na hora do almoço. Não era necessário, estavam todos muito próximos, de modo que num abrir e fechar de olhos se formou uma fila à porta da cerca da aldeia colorida. Ainda do lado de fora da cerca já pairava no ar um aroma a pimento e sardinha assada, iguaria muito apreciada pela maralha do acampamento. Era uma delícia, acompanhada com fatias de pão de milho… e uma cervejita para empurrar. Entretanto, o caldo verde… com as rodelas de chouriço e hortelã do “Quintal”. No fim... o habitual cafezito confeccionado na chaleira de ferro fundido e abrasada no borralho da fogueira.

    – O café feito na chaleira ao borralho da fogueira, tem um sabor especial! – comentavam os velhotes.

    – É melhor do que o de máquina! – repicava o meu pai, preparando um jogo de cartas. Mas não ficava por aí; a noite ainda era uma criança. E quando a viola entrava em cena ninguém mais a calava; desde batutas, modas, fado e folclore... até ao despique voluntário dos artistas tribais, cantando ao desafio.


    Foi farra pela certa até às tantas, uma festa sem igual que se repetia no dia-a-dia na aldeia colorida. Um acampamento extraordinário que só perdia o galardão de primeira maravilha perante a fantasia do pantanal, o “Quintal”! Um labirinto de sebes bem construídas, ornamentadas com giestas, salgueiros, palmas, abrunheiros e outras plantas abundantes na zona cercavam a aldeia colorida, que se identificava pelas cinco tendas pertencentes à minha família... mais quatro instaladas um pouco ao lado das nossas, pertença de famílias de pescadores desportivos, amigos de meu Pai e meu tio. Em três tempos a simpatia conquistou laços de amizade entre as partes, e naturalmente os hábitos foram-se fundindo, de modo que a ideia das cercas foi desde logo assimilada por todas as famílias moradoras “temporárias” do acampamento.

   Cada cerca sua entrada... individualizando cada tenda, formavam um círculo a toda a volta e criando um espaço vazio no centro, onde o povo se bronzeava nas horas de Sol. E à noite, depois do jantar… as festadas que animavam a tribo até às tantas. Era assim todos os dias, e quando a chuva nos brindasse havia a minha tenda para servir de salão. Jogava-se às cartas, damas, xadrez ... e arranhava-se no violão, um dos passatempos de eleição, e por fim... para aterrar, umas quantas anedotas que geravam risos abafados por respeito a quem dormia.
E quando o cansaço apertava... a “naninha” estava ali, bastava fechar os olhos e:

   – Até amanhã! Um sonho no paraíso!…


Autor: "Domingos Quintas" 
16/12/2009

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